O legado marxista e a luta política na América Latina
Ivan Pinheiro *
Em primeiro lugar, agradecer o honroso e irrecusável convite para participar deste importante seminário, que se propõe a trazer o legado de Marx para colocá-lo a serviço da luta de classes, em especial na América Latina, e não apenas para uma discussão meramente acadêmica ou diletante.
A vasta obra de Marx e Engels é a principal contribuição para nós revolucionários entendermos a natureza do capitalismo e identificarmos os aliados e inimigos de classe do proletariado, levando em conta a conjuntura e a correlação de forças, em cada época, em cada país. Conhecendo nossos inimigos e aliados, à luz dos ensinamentos de Marx, podemos acertar mais do que errar, na luta para destruir o estado burguês e emancipar o proletariado.
Do ponto de vista da ação, das contradições do capitalismo e da luta política, podemos afirmar que o MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA, que Marx compartilhou com Engels há 163 anos, continua tão atual quanto fundamental como contribuição aos partidos que lutam pela revolução socialista.
Marx está vivo quando se confirmam suas análises de que o capital extrapolaria seus limites nacionais, assumindo dimensão mundial e aumentando, quanto mais senil, suas tendências destrutivas frente à humanidade. Nunca foram tão expressivas e inconciliáveis as contradições entre a apropriação privada do capital e o caráter social da produção e portanto tão agudas as crises cíclicas de superprodução, agora com características estruturais, em que não se distinguem, temporalmente, ciclos, mas novas manifestações de uma mesma crise sistêmica. Trata-se de uma crise global, que Jorge Beinstein chama de crise da civilização burguesa, multifacética, em que os EUA estão no epicentro. Trata-se de uma crise do modo de produção capitalista.
A CRISE DO CAPITALISMO:
A crise sistêmica do capitalismo gera necessidades cada vez maiores de reprodução do capital. Disputas de mercados, escassez de fontes energéticas e recursos naturais atiçam as contradições inter-burguesas e empurram o imperialismo para novas aventuras militares. Estamos assistindo guerras imperialistas no Iraque e no Afeganistão, e agora na Líbia, e as tentativas de se abrirem novos focos de conflito, como no Irã, na Síria, na Coréia do Norte, além da continuidade da ocupação palestina.
Para tentar sair da crise, o capital saqueia os cofres públicos para salvar banqueiros e oligopólios; ataca os direitos sociais e trabalhistas, diminui a qualidade dos serviços públicos; aprofunda a exploração e a barbárie, a fome e a miséria. Para tal, recrudescerão a criminalização e a repressão aos movimentos sociais e às organizações populares e revolucionárias.
Esta crise, apesar de seus elementos estruturais, não é, por si só, a crise final do capitalismo, que não cairá de podre. Mas, dialeticamente, poderá criar as condições - com o provável acirramento da luta de classes em âmbito mundial – para colocar em relevo o protagonismo do proletariado e, a depender de certos fatores, influenciar positivamente a correlação de forças, abrindo possibilidades para o avanço da luta pela superação do capitalismo, na perspectiva do socialismo.
Apesar da diminuição relativa e gradual de sua hegemonia econômica, cultural, política e ideológica, os EUA ainda detêm a hegemonia militar inconteste, o que lhes permite continuar como o pólo mais importante num mundo cada vez mais multipolar, ainda que no campo capitalista. No caso da América Latina, o imperialismo norte-americano é altamente hegemônico e o inimigo principal dos povos da região. Reconhecer isto não significa alimentar ilusões de escolhermos outros imperialismos, como se as contradições entre eles fossem significativas.
Os trabalhadores passaram as duas últimas décadas do século passado numa luta passiva, em função da avassaladora hegemonia do imperialismo, sobretudo o norte-americano. A desagregação da URSS teve um impacto arrasador, na medida em que deixou de ser um campo em que as forças progressistas e revolucionárias podiam obter apoio e que o mundo deixou de ser bipolar.
No entanto, os trabalhadores vêm aumentando a sua combatividade e os povos do Oriente Médio e do Norte da África se levantam contra tiranias, o imperialismo e o sionismo. Em várias partes, os trabalhadores retomam suas lutas e se colocam como vanguarda alternativa na luta de classes.
A CORRELAÇÃO DE FORÇAS NA AMÉRICA LATINA
A América Latina é uma das regiões do mundo em que a resistência retomou com mais força, apesar da heterogeneidade dos processos de mudança. Neste século, até por volta de 2008, as forças populares e anti-imperialistas contabilizavam mais avanços que retrocessos, sobretudo após a grande vitória do povo venezuelano, no fracassado golpe contra Chávez em 2002, talvez a primeira derrota golpista dos EUA na região.
Cuba não ficaria mais sozinha na luta contra o imperialismo. Sob a influência dos avanços na Venezuela, vieram as vitórias de Evo Morales, na Bolívia, e de Rafael Correa, no Equador.
Nesses três países, em que os processos de mudanças são os mais avançados, conseguiu-se, a partir de pressão popular, a convocação de Assembleias Constituintes livres e soberanas, que abriram espaços para avanços progressistas.
Num patamar intermediário, foram importantes neste período as vitórias da FSLN, na Nicarágua, e da FMLN, em El Salvador, e a manutenção da Frente Ampla no governo uruguaio.
Os governos dos Kirchner na Argentina, Michele Bachetel no Chile, Lula no Brasil e Lugo no Paraguai, com coligações heterogêneas, derrotaram forças reacionárias em seus respectivos países. No entanto, no nível macroeconômico e político, suas ações foram sempre no sentido de ampliar os interesses da burguesia de seus países, aumentando a presença e a exploração capitalista na região, contribuindo, assim, para uma afirmação burguesa no aparato de Estado.
As maiores vitórias desta fase foram o enterro da ALCA em Mar Del Plata, a reeleição de Chávez, a retirada da base norte-americana de Manta, no Equador, e a vitória de Evo Morales no referendo revogatório. A maior derrota foi o não no referendo constitucional na Venezuela, em dezembro de 2006. Todavia, é importante registrar o crescimento das lutas dos trabalhadores, dos grupos étnicos e da reafirmação da cultura originária em grande parte da América Latina.
O imperialismo estadunidense, percebendo que iam longe demais as mudanças onde considera seu quintal, retoma com intensidade a pressão sobre a região. Voltam-se, com intervenção política e aparato bélico, suas ações para a América Latina, sobretudo para a região andina. Trata-se de tentar, no plano tático, frear o processo de mudanças e, no estratégico, consolidar e expandir o controle sobre as riquezas naturais do continente, que são imensas. Além do petróleo e do gás, a América do Sul tem as maiores reservas de água potável e de biodiversidade do planeta: ao norte, a Amazônia; ao sul, o Aqüífero Guarani.
Uma das principais táticas utilizadas pelo inimigo foi estimular o separatismo, escolhendo cidades dominadas politicamente por setores burgueses de maior acumulação e que já têm rivalidades antigas com as capitais: Zulia (Venezuela), Santa Cruz de La Sierra (Bolívia) e Quaiaquil (Equador).
Não é à toa que a Quarta Frota da Marinha de Guerra dos EUA voltou a operar no nosso continente, após mais de 60 anos de inatividade.
Marco importante desta ofensiva ianque foi o assassinato do Comandante Raul Reyes, pelo consórcio político/bélico representado pelos EUA/Colômbia, num ataque terrorista ao território do Equador, cujo Presidente não se acovardou e resolveu defender a soberania de seu país. Ali se tratava de paralisar as trocas humanitárias na Colômbia, que poderiam criar um clima favorável a uma negociação política a respeito do conflito armado.
A satanização da insurgência colombiana e a interrupção das trocas humanitárias, estas à época lideradas por Chávez e a Senadora Piedád Córdoba, criam as condições para a instalação de mais sete bases militares na Colômbia.
O golpe em Honduras é parte importante da luta contra o fortalecimento da ALBA e a recuperação, como aliado dos EUA, de um país que tem uma das maiores bases da América Central (Sotto Cano) e que se localiza estrategicamente entre a Nicarágua e El Salvador. Depois veio o aproveitamento do terremoto no Haiti e a cumplicidade do governo da Costa Rica, para o imperialismo instalar mais tropas nesses países. É parte deste esforço para estancar as mudanças e atingir a ALBA a recente tentativa de golpe no Equador.
No Paraguai, já sabíamos das dificuldades que teria Lugo, se efetivamente quisesse promover as mudanças prometidas. Foi eleito como expressão de um movimento de massas débil, na esperança de derrotar os conservadores que governavam o país havia 41 anos e ainda estão no poder. Tendo passado mais da metade de seu governo, o movimento de massas não teve forças para empurrar as mudanças e tudo indica que o Presidente se entregou à direita e ao imperialismo, aceitando um pacto com a classe dominante para não ser derrubado por um golpe. Lugo já não governa. Espera apenas acabar seu mandato.
OS PRINCIPAIS INIMIGOS DO IMPERIALISMO NA AMÉRICA LATINA
CUBA
Dificilmente teria avançado tanto o processo de mudanças na América Latina se não fora o exemplo da cinqüentenária Revolução Socialista de Cuba, que mostrou a possibilidade de as classes dominadas enfrentarem e derrotarem o imperialismo e escolherem seu próprio destino.
Na década de 90 do século passado, após o colapso da URSS, Cuba passou por dificuldades econômicas que exigiram o sacrifício do “período especial”, uma vez que mais de 80% do seu comércio dava-se com a URSS e o Leste Europeu. Novas medidas políticas e econômicas foram adotadas para enfrentar tal situação, no sentido de prosseguir com a efetivação do socialismo, apesar do agravamento do cruel bloqueio que hoje já dura mais de 50 anos.
O surgimento dos processos de mudança na América Latina, sobretudo o da Venezuela, deu um novo alento e respaldo à Revolução Cubana.
Claro está que o processo de construção do socialismo em Cuba é extremamente complexo e vive um momento de grandes dificuldades. O maior desafio do povo cubano é justamente manter firme a decisão de seguir construindo sua experiência de socialismo.
Tudo indica que as medidas propostas pelo governo refletem as necessidades geradas pelo processo histórico atual. Rejeitamos as análises que dão como inevitável em Cuba o retrocesso ao capitalismo, como querem fazer ver os ideólogos representantes da burguesia e do imperialismo, que por inúmeras vezes já anunciaram a morte do socialismo cubano. Ao mesmo tempo, consideramos justas as preocupações, no campo revolucionário, quanto aos riscos de se abrirem brechas para a incidência da mais-valia.
É imperioso seguirmos solidários ao povo, ao governo e ao Partido Comunista Cubano e ao caminho revolucionário que os cubanos escolheram e desenvolveram a partir de 1959. O povo cubano é quem melhor saberá dizer como enfrentar seus problemas e continuará encontrando, com a coragem, a obstinação e a criatividade que lhe são peculiares, as saídas para a manutenção e o aprofundamento das conquistas obtidas no processo de construção da sociedade socialista.
A luta pelo fim do bloqueio e pela libertação dos Cinco Heróis é parte da principal pauta dos revolucionários de todo o mundo.
VENEZUELA
“A queda da Venezuela arrastaria inexoravelmente as esperanças dos povos da América Latina. Seu triunfo, entretanto, pode mudar o curso da história.” (Fidel Castro)
Além de Cuba, o governo venezuelano é hoje, em nosso continente, o principal inimigo do imperialismo, pela inspiração a processos semelhantes em outros países, aos quais presta efetiva solidariedade política e material; pela defesa de Cuba Socialista e parceria com ela; pela contribuição decisiva para inviabilizar a ALCA e implantar a ALBA; por ter avançado mais em mudanças institucionais e estruturais; por ter resistido a vários golpes; por ter criado uma mídia alternativa à burguesa; por ter as reservas minerais mais importantes da região andina e por ter uma relação superior de respeito aos interesses dos trabalhadores em sua marcha a caminho do socialismo.
Até dezembro de 2006, com a derrota no referendo constitucional, a revolução bolivariana tinha uma trajetória ascendente, com grandes vitórias, como o golpe midiático (2002), o lockout petroleiro (2003), o referendo revogatório (2004) e a reeleição de Chávez (2006).
A única derrota da revolução bolivariana teve como principal causa o erro de tentar decretar o socialismo através de um referendo de uma proposta de reforma constitucional, redigida previamente e apresentada pelo Presidente Chávez e não por subscrição popular, sem uma ampla discussão prévia entre as massas. Mas a derrota teve a virtude de colocar em evidência todos os problemas da revolução.
Mas apenas os erros táticos e a ação dos agentes do imperialismo não seriam capazes de derrotar o governo, que contava com quase dois terços do eleitorado. Metade dos eleitores do governo se absteve no referendo, dando vitória à direita. É a correta análise desta abstenção que pode ou não ajudar a retomada e o avanço da revolução, a depender do enfrentamento de problemas não resolvidos até hoje.
Saltam aos olhos as duas principais causas da abstenção: a traição de setores vacilantes, oportunistas e até contrarrevolucionários que gravitam em torno do governo e o recado de setores populares, insatisfeitos com os rumos e o ritmo da revolução bolivariana, o chamado voto castigo. Um quadro parecido, apesar de não tão dramático, se deu recentemente nas eleições parlamentares, em que a direita teve um desempenho acima da esperada, elegendo mais de 40% do parlamento.
A situação da luta de classes na Venezuela caminha para um confronto, que poderá resvalar para a violência, em face da notória impossibilidade de conciliação entre projetos tão antagônicos. Ao que tudo indica, este desempate se dará após a realização das eleições presidenciais, em 2012. Não será uma simples eleição a que estamos acostumados na democracia burguesa tradicional, no campo do chamado “jogo democrático”, da “alternância de poder”.
Se Chávez perder, não será para setores de esquerda, mas para a direita ligada e financiada pelo imperialismo, que revogará todos os avanços e acabará com a ALBA. A repercussão na América Latina (e no mundo) seria desastrosa, um retrocesso muito grande, sem qualquer comparação, por exemplo, com a derrota de Bachelet no Chile.
Por isso, contribuir para a vitória de Chávez será um desafio para toda a esquerda conseqüente da América Latina. Por mais que algumas forças de esquerda, como o PCB, tenham restrições a alguns aspectos da revolução bolivariana e não sejam chavistas, esta será uma das principais batalhas em 2012. Esperamos que o papel da classe trabalhadora na defesa de seu projeto seja o elemento central da vitória de Chávez.
Sem dúvida, nos doze anos de Revolução Bolivariana produziram-se grandes avanços, como melhores indicadores sociais a partir das diversas Misiones, a construção ainda que limitada de mecanismos de poder popular, a nacionalização da PDVSA e de alguns monopólios privados, o fortalecimento do papel do Estado no setor financeiro e na política monetária e cambial. Valorizamos também grandes avanços na consciência anti-imperialista e mesmo anticapitalista de amplas camadas populares.
São inegáveis as evidências de que o Presidente Chávez está honestamente convencido da necessidade de construir o socialismo, mesmo cercado por um entourage heterogêneo em que, ao lado de socialistas, pontificam contrarrevolucionários e corruptos. Têm um grande peso na direção do Estado setores da chamada “boli-burguesia” e fundamentalmente da pequena burguesia, que não têm interesse em mudanças revolucionárias.
Por isso, não podemos fechar os olhos a alguns fatores que podem levar a retrocessos e até mesmo à derrota do processo de mudanças, com a volta ao governo dos círculos direitistas associados ao imperialismo contribuindo para o massacre do projeto popular.
A economia venezuelana continua sendo basicamente petroleira, sem avanços na diversificação e na substituição de importações. Trata-se de um país basicamente importador, inclusive de alimentos, com alta dependência tecnológica. Não têm sido desenvolvidas a contento, por outro lado, as iniciativas governamentais como as “empresas de produção social”, as cooperativas e pequenas empresas. Nas novas empresas criadas pelo governo e naquelas que foram estatizadas, a participação dos trabalhadores é insuficiente e formal. Em algumas, a direção foi apropriada por gerentes corruptos e ineficientes. A não participação dos trabalhadores na gestão dessas empresas pode gerar um ciclo de “capitalismo de Estado”.
Em resumo, para avançar na perspectiva socialista, a atual fase, que o PCV define como “social-reformista, patriótica e progressista” só poderá ser superada por uma nova correlação de forças em que setores populares e revolucionários, liderados pela classe operária, alcancem um nível necessário de consciência, unidade, organização e mobilização que lhes permitam impor sua hegemonia.
BOLÍVIA
Na Bolívia, há um fator que tem dado boas condições de governabilidade ao governo popular. Evo foi eleito de baixo para cima, no contexto de grandes mobilizações, como as Guerras do Gás e da Água, que haviam derrubado três presidentes burgueses.
Com a vitória no referendo revogatório de agosto de 2008, evitou-se, pelo menos por agora, o separatismo de Santa Cruz e um golpe de direita que estava em curso. O Presidente saiu fortalecido, consagrado em meio ao seu mandato, em referendo convocado por ele próprio, com 67% dos votos, 14% a mais do que quando foi eleito em 2005.
Mas é preciso ficar claro que quem derrotou o golpe e o separatismo foram as massas e que o processo não está imune a retrocessos, sobretudo se limitar-se aos aspectos culturais e democráticos, que são importantes, mas não decisivos na luta de classes.
Uma grande virtude do processo boliviano é a tradição de luta e de unidade da COB (Confederação Operária Boliviana).
EQUADOR
Como na Venezuela e na Bolívia, a mídia burguesa é o maior partido de oposição, coadjuvado pelas associações empresariais, partidos conservadores, a cúpula da igreja católica e ONGs financiadas pela USAID, sob a direção da embaixada norte-americana.
Rafael Correa, apesar de limitações, promoveu algumas mudanças. Começou com uma auditoria da dívida externa, que reconheceu apenas 30% do total até então cobrado pelos credores. A partir da pressão popular, efetivou-se uma Constituinte livre e soberana, independente do parlamento, propiciando uma nova constituição (promulgada em julho de 2008) avançada em termos de direitos sociais. Importantes medidas de Rafael Correa foram a determinação de retirada da base militar dos EUA e a integração de seu país à ALBA.
Correa também vem estatizando gradualmente a indústria petroleira, com a criação de um novo marco regulatório, em que o Equador retoma sua soberania sobre parte de suas riquezas e usufrui de seus rendimentos. Todavia, o governo Correa tem que sair do marco personalista, passando a agir em consonância com os trabalhadores do Equador, para que possa enfrentar o imperialismo e a burguesia e implementar uma saída progressista e popular.
BRASIL: A POLÍTICA EXTERNA PRAGMÁTICA
Na América Latina é difícil um comunista se dizer oposição a Lula e a Dilma. É compreensível. No imaginário da esquerda latino-americana, Lula é socialista e sua política externa parece anti-imperialista.
O Brasil é a oitava economia capitalista do mundo. No plano político, as lideranças burguesas dividem-se entre as que, de um lado, defendem um Estado promotor de políticas compensatórias e incentivador de um “desenvolvimentismo” capaz de acelerar o crescimento capitalista e pretensamente resolver as desigualdades sociais através do ciclo virtuoso da produção, emprego, consumo e aquelas que, de outro, defendem a ampliação das políticas neoliberais, com mais retirada de direitos dos trabalhadores, mais privatização, mais dependência ao capital financeiro internacional.
Os governos petistas representam os setores “desenvolvimentistas” da burguesia, que querem se expandir e competir no mercado externo, o que pressupõe algum grau de autonomia, não conflitiva, com os interesses norte-americanos.
Navegando entre as contradições interburguesas e interimperialistas, a política externa brasileira é coerentemente pragmática. Ao mesmo tempo em que aceita liderar as tropas da ONU que ocupam o Haiti, a pedido de Washington, ajuda Chávez a vencer o golpe petroleiro e Evo ao golpe separatista.
Com sua eficiente diplomacia, o capitalismo brasileiro vai ganhando mercados. Aos olhos de Washignton, Lula se apresentava como uma alternativa moderada ao “radicalismo” de Chávez e Evo Morales; aos olhos da esquerda latino-americana, se apresentava como aliado, mas que cobra um preço alto pela solidariedade: o aproveitamento de oportunidades na busca de mercados. E é o estado brasileiro, principalmente através de bancos públicos, que alavanca as grandes empreiteiras e monopólios multinacionais de origem brasileira a invadirem e crescerem em várias partes do mundo, sobretudo na América Latina.
Quando o governo brasileiro ajuda a inviabilizar a ALCA ou lidera a criação da UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) devemos saudá-lo, pois isto objetivamente contraria os interesses dos EUA. Mas não esqueçamos o outro lado da questão: o Brasil é um contraponto capitalista ao movimento de integração anti-imperialista da região, representado pela ALBA.
A esquerda não pode conciliar e deixar de marcar diferenças com Lula e Dilma, que governam fundamentalmente para o capital, tanto na política externa como na interna. A tarefa principal dos governos petistas é “destravar” o capitalismo, custe o que custar, depredando o meio ambiente e reduzindo os direitos trabalhistas, inclusive com a cooptação de setores do movimento sindical e popular. Aliás, o governo Lula jogou papel importante para cooptar e degenerar a CUT, uma central que já foi combativa, afastando da luta anticapitalista e anti-imperialista na América Latina um enorme contingente de trabalhadores.
Com Dilma, a política externa ainda tende a uma inflexão, cujos sinais são as críticas ao Irã, as mudanças nos quadros dirigentes do Ministério de Relações Exteriores, a abstenção cúmplice na agressão imperialista à Líbia e, sobretudo, a vergonhosa recente visita de Obama ao Brasil.
A vinda do presidente dos EUA ao Brasil foi um gesto forte que marcou um claro movimento de estreitamento das relações entre os dois países. Obama foi o primeiro estadista estrangeiro a visitar o Brasil após a posse de Dilma. Mas não foi uma visita qualquer.
O governo brasileiro montou um palanque de honra para Obama falar ao mundo, em especial à América Latina, para ajudar os EUA a recuperarem sua influência política e reduzir o justo sentimento antiamericano que nutre a maioria dos povos. Nem na ditadura militar, um presidente estadunidense teve uma recepção tão espalhafatosa como a que Dilma lhe ofereceu.
Em verdade, o Brasil esteve três dias sob intervenção do governo ianque, que decidiu tudo sobre a passagem de Obama pelo país. Passamos pelo vexame de agentes da CIA revistarem Ministros de Estado brasileiros, em eventos da visita.
No caso da América Latina, foi um gesto de solidariedade aos EUA em sua luta contra os processos de mudança, sobretudo na Venezuela, Bolívia e no Equador.
A moeda de troca foi um mero aceno norte-americano à pretensão obsessiva do Estado burguês brasileiro de ocupar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, um símbolo para elevar o Brasil à categoria de potência capitalista mundial.
Enganam-se os que pensam que existe contradição entre a política externa do governo Lula e a de Dilma, ambas fundamentalmente a serviço do capital. Trata-se agora de uma inflexão pragmática. Após uma fase em que o Brasil expandiu e consolidou seus interesses comerciais em novos “mercados” como América Latina, África, Ásia e Oriente Médio, a tarefa principal agora é dar mais atenção aos maiores mercados do mundo, para cuja disputa segmentos da burguesia brasileira se sentem mais preparados.
O governo brasileiro, durante os três dias em que Obama presidiu de fato o Brasil, não fez qualquer gesto ou apelo aos EUA, sequer de caráter humanitário, pelo fim do bloqueio a Cuba, o desmonte do centro de tortura em Guantánamo, a criação do Estado Palestino, o fim da intervenção militar no Iraque e no Afeganistão.
Debochando da soberania brasileira, Obama ordenou os ataques militares contra a Líbia a partir do território brasileiro.
Os principais objetivos da vinda de Obama ao Brasil foram as reservas petrolíferas do pré-sal e a licitação para a compra de aviões militares.
Cada vez fica mais claro que, no caso brasileiro, o imperialismo não é apenas um inimigo externo a combater, mas um inimigo também interno, que se entrelaçou com os setores hegemônicos da burguesia brasileira. O pacto Obama/Dilma reforça o papel do Brasil como ator coadjuvante e sócio minoritário dos interesses do imperialismo norte-americano na América Latina, como tristemente já indicava a vergonhosa liderança brasileira das tropas militares de intervenção no Haiti.
COLÔMBIA: OUTRA GRANDE DISPUTA!
O imperialismo sabe que não haverá paz na Colômbia e, quem sabe, na América Latina, sem o reconhecimento do caráter beligerante e político das FARC. Sabe também que a solução não poderá ser estritamente militar, pois o conflito colombiano é antes de tudo político, econômico e social.
O imperialismo também precisa derrotar a insurgência, para que não sirva de exemplo. Não podemos esquecer que não são convencionais, mas insurgentes, as forças que resistem ao imperialismo na Palestina, no Iraque e no Afeganistão. Forças armadas convencionais não resistem aos ataques aéreos das grandes potências imperialistas. Dependendo dos desdobramentos da crise do capitalismo, nenhuma forma de luta poderá ser descartada. O direito dos povos à rebelião poderá se transformar em dever.
Mas como é difícil vencer a insurgência militarmente, não só pelo aspecto bélico como também por seu histórico enraizamento no povo colombiano, o imperialismo a sataniza como “narcoterrorista”, tentando isolá-la, inclusive de setores reformistas da esquerda latino-americana, preocupados com a sua votação na próxima eleição.
Mas se não pode derrotar a guerrilha, não interessa ao imperialismo o fim do conflito colombiano, para justificar a luta “contra o narcoterrorismo”, que usa como pretexto para criar mais bases na Colômbia e arredores. A Colômbia está para a América Latina como Israel para o Oriente Médio. É um dos principais receptores de ajuda militar norte-americana. E as FARC não podem entregar suas armas e descer as montanhas, sob pena de um novo extermínio, como nos anos 90, em que 5.000 militantes da União Patriótica foram assassinados pelo estado colombiano, após a assinatura de um “acordo de paz” com a guerrilha para que esta se transformasse num partido político legal!
Para forçar o estado colombiano a reconhecer o conteúdo político, econômico e social do conflito, devemos lutar muito para que a UNASUL chame para si a iniciativa de viabilizar o início de um processo de negociação política, para a qual a liderança do Brasil é fundamental.
As FARC são um fator de resistência à ocupação imperialista da Colômbia e, porque não dizer, da Amazônia.
Para avançar nas mudanças sociais na América Latina e evitar guerras e retrocessos, além da necessidade decisiva de elevar o empenho e a organização dos trabalhadores na luta de classes, há uma tarefa importante: derrotar o principal braço do imperialismo norte-americano em nosso continente, o estado terrorista da Colômbia.
REFORMA OU REVOLUÇÃO?
A crise deveria enterrar as ilusões dos que ainda consideram possível humanizar o capitalismo. Não há mais, como na época de ouro da socialdemocracia, anéis para a burguesia dar aos trabalhadores para não perder os dedos. Aliás, no final do século passado ela já os havia tomado de volta, aproveitando-se da queda da União Soviética. É parte importante das tarefas dos revolucionários o combate sem trégua e conciliação aos reformistas, tão bem definidos por Eustoquio Contreras, em seu livro "Princípios e Valores do Processo Revolucionário":
"O reformismo é uma corrente político-partidária favorável a mudanças graduais e não acredita em mudanças revolucionárias. Ideologicamente os reformistas são pessoas comprometidas com determinados interesses, aos quais defendem diante da possibilidade de serem afetados por qualquer mudança radical. Os reformistas se esforçam para conter as lutas revolucionárias aplicando uma artificial política de conciliação entre as classes com interesses opostos. O reformista colaborara com a burguesia na implementação de reformas parciais, que não afetam os seus interesses de classe, enquanto enganam as classes exploradas com a promessa de reformas, que irão gradualmente resolver os problemas dos oprimidos e explorados."
Marx, na obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte, já afirmava que o “caráter peculiar da social-democracia resume-se no fato de exigir instituições democrático-republicanas como meio não de acabar com dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e transformá-lo em harmonia”. Segundo Marx, a social-democracia surge na Europa visando promover a transformação da sociedade por um processo democrático, porém, uma transformação dentro dos limites da pequena burguesia.
Não há também mais espaço, no capitalismo cada vez mais globalizado, para ilusões nacional-desenvolvimentistas ou nacional-libertadoras, baseadas em alianças dos trabalhadores com as chamadas burguesias nacionais. Mesmo nos países em que o desenvolvimento das forças produtivas se processa em ritmos mais lentos que nas nações de capitalismo avançado, as contradições de setores minoritários das burguesias nacionais com o imperialismo são residuais, até porque dependem cada vez mais do grande capital e dos monopólios.
Na fase imperialista do capitalismo, ainda mais em meio à sua maior crise, a hegemonia no Estado burguês pertence aos segmentos associados aos grandes monopólios. Quem manda são os grandes capitalistas ligados aos bancos, agronegócio, exportadores de matéria prima, grandes indústrias.
Cada vez mais se acentuará no mundo a contradição entre o capital e o trabalho. Não apenas nos países desenvolvidos ou emergentes, como é o caso do Brasil, plenamente associado de forma subordinada ao imperialismo. É só olhar para países pouco desenvolvidos, como a Bolívia e a Venezuela, para entender a ilusão de alianças com as burguesias nacionais. Vejam a violência da burguesia boliviana, diante de uma revolução que não é socialista, mas ainda democrática e cultural, e o ódio que nutre a burguesia venezuelana frente à revolução bolivariana.
No estágio atual do capitalismo, e sobretudo em decorrência de sua profunda crise, se evidenciará cada vez mais a centralidade do trabalho. Estão sendo jogados no lixo da história todos os mitos construídos pelo neoliberalismo, como o “estado mínimo”, o “livre-mercado” e o “fim da classe operária”.
Ao contrário do que dizem os profetas do fim da história e os reformistas, o proletariado aumenta no mundo, em quantidade e qualidade. As camadas médias se proletarizam. Em todas as partes, sobretudo nos países desenvolvidos, apesar da atual fragilidade e fragmentação do movimento operário e sindical, há grandes possibilidades de a luta de classes se intensificar.
Outra ilusão reformista a ser combatida é a ilusão de transição ao socialismo apenas pela via institucional.
Marx, inspirado na rica experiência da Comuna de Paris, chamava a atenção para a impossibilidade de uma transição revolucionária sem a hegemonia político-militar do proletariado, um poder popular verdadeiramente democrático com o objetivo de varrer as instituições do estado burguês e a hegemonia das classes dominantes.
A tomada do poder político por parte da maioria do povo nunca foi nem será uma concessão generosa das classes dominantes. O sistema de exploração que funde os interesses das chamadas burguesias nacionais com os do imperialismo não “cai de podre” nem pelo passar do tempo. Os exploradores não entregam voluntariamente o poder aos explorados, nem mesmo quando setores representativos destes últimos ganham uma eleição, nos marcos da democracia burguesa. Às vezes, são obrigados, a contragosto, a entregar o governo a setores populares, mas estes só alcançarão o poder com lutas muito duras, acumulando forças e golpeando o estado burguês, utilizando-se de métodos e formas de luta as mais variadas (institucionais e insurgentes), adaptadas às circunstâncias, tendo principalmente em conta a correlação de forças entre as classes em luta.
Seja qual for a via da conquista do poder, o caminho ao socialismo só pode ser pavimentado na mobilização e ação das massas exploradas, sob a direção de uma vanguarda revolucionária.
É fundamental, portanto, a luta sem tréguas contra todas as formas de reformismo, como as teorizações sobre os “novos sujeitos”, o “movimentismo” (cujo maior exemplo é o Fórum Social Mundial), marcado pela aversão à política e aos partidos e pelo privilégio de atuação em ONGs e movimentos sociais os quais, em que pese o fato de alguns deles levantarem bandeiras justas, não compreendem a necessidade da luta global pela superação do capitalismo.
Não é nunca demais lembrar a passagem de Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista:
“Os comunistas não se rebaixam a dissimular suas opiniões e seus fins. Proclamam abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente”.
DE QUE SOCIALISMO FALAMOS?
A continuidade e o avanço do atual processo de transformações na América Latina e a possibilidade de ele vir a assumir um caráter socialista vão depender principalmente da correlação de forças, do nível de consciência, unidade, organização e mobilização das massas populares.
É correto os revolucionários participarem dos processos de mudanças que se dão em países como Venezuela, Bolívia e Equador, desde que mantenham autonomia e visão crítica, combinando unidade e luta. Para isto, é preciso que os comunistas deixem claro, nesses países, as limitações de conceitos de socialismo tais como “bolivariano”, “cidadão”, “do século XXI”, do “bom viver”.
Na Ideologia Alemã e no Manifesto do Partido Comunista, Marx duela com as adjetivações do socialismo, todas elas de conteúdo reformista.
Estes adjetivos podem até se adaptar à atual fase dos processos revolucionários nesses países, mas não ao socialismo. Até porque em Nossa América, com exceção de Cuba, não há ainda qualquer revolução socialista em curso, mas importantes processos de mudanças, que podemos caracterizar como revoluções nacionais e democráticas.
É necessário relermos os conceitos que nos legaram Marx, Lenin e outros pensadores a respeito do socialismo, para reafirmá-los e os adaptarmos ao mundo contemporâneo. Estes conceitos não foram negados na derrota da experiência de construção do socialismo na União Soviética e outros países do Leste Europeu. Pelo contrário, continuam atuais. Apesar de o saldo da Revolução Russa ter sido positivo, ali foram ignorados ou deturpados vários destes princípios, sobretudo aqueles relativos à democracia operária, que levaram à hipertrofia e ao esclerosamento do Partido e sua fusão (e confusão) com o Estado e as organizações de massa.
Portanto, não se trata de inventarmos “novos” socialismos, como se fosse possível conjugar elementos do socialismo e do capitalismo. Este é um terreno pantanoso, em que se adjetivam o substantivo socialismo até como “moderno” ou “democrático”, como se fosse velho ou antidemocrático.
E não haverá revolução socialista se não se começar a desconstruir o estado burguês e os poderes de fato constituídos pela mídia hegemônica, o aparato policial militar, a justiça. E a transição ao socialismo só será assegurada pela instauração do Poder Popular – a democracia direta e protagônica das massas – e o estabelecimento de novas relações de produção, com a supressão da exploração do homem pelo homem.
Mas não podemos cair no voluntarismo, deixando de reconhecer as dificuldades por que passam os processos de mudanças na América do Sul. A primeira coisa é reconhecermos que ainda não estamos, objetiva e subjetivamente, em situações pré-revolucionárias. Segundo Marx, a revolução não se dá da noite para o dia e não depende apenas de vontade. É um processo com duração de difícil previsão e não linear, sujeito a retrocessos. .
Esses processos estão atingindo um ponto crucial, que está chegando mais cedo na Venezuela, mas não tardará a chegar na Bolívia e no Equador. Trata-se de um momento de inflexão, em que se apresenta a dicotomia reforma ou revolução.
Há uma certa fadiga nas massas exploradas, pois as mudanças não chegam às relações entre capital e trabalho. Os trabalhadores são portadores de direitos formalizados na constituição e usufruem da melhoria dos serviços públicos, mas não sentem qualquer mudança mais significativa em suas condições de vida e na distribuição de renda.
Essa é uma limitação de revoluções nacionais e democráticas hegemonizadas por setores da pequena e média burguesia e não pelo proletariado; portanto, reformistas. A maior virtude de processos como estes é que tornam evidente a luta de classes, contrapondo os interesses do capital aos do proletariado, dos trabalhadores e de setores das camadas médias. Isto não ocorre em processos mitigados, de conciliação de classe, como no Brasil, em que os governos e os partidos ditos de esquerda que lhes apóiam não mobilizam as massas e não enfrentam ideologicamente o capitalismo.
A maior debilidade desses processos é a falta de instrumentos políticos e organizações de massas que impulsionem as mudanças no sentido da revolução permanente, verdadeiramente socialista, que vá na direção da constituição do duplo poder e da ruptura com o estado burguês.
* Ivan Pinheiro é Secretário Geral do PCB (Partido Comunista Brasileiro)
Palestra em seminário sobre Marx, em Maracay (Venezuela), organizado pela Prefeitura de Girardot, a Frente Alfredo Maneiro e o Movimento Continental Bolivariano.
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