sexta-feira, 15 de julho de 2011

OTÁVIO DUTRA

Desde uma realidade tão distante e distinta, de intenso aprendizado com a experiência do povo cubano e das diversas organizações revolucionárias da América Latina e do mundo - que diariamente tenho o privilégio de estar em contato e intercambio - buscarei fazer uma singela reflexão, com a intenção de contribuir com o debate interno do Partido. Não escondo a preocupação que toma conta de mim quando soube do desligamento de alguns militantes, que sempre surgirá a cada vez que um camarada decida tomar outro rumo. Das particularidades de cada uma das cartas de desligamento que tive acesso, farei o exercício de generalizar os aspectos mais relevantes e centrais, longe de acreditar que a verdade é tão objetiva quanto os fatos.

Assim como é a realidade, a construção de um instrumento político que sirva ao projeto revolucionário das classes oprimidas também é repleta de contradições, determinadas em última instância pelas mesmas contradições da realidade e das relações sociais nela estabelecidas. Quando não partimos dessa premissa caminhamos em terreno lodoso. Buscar conhecer as principais contradições dessa realidade e seu movimento é dever do ser coletivo Partido, que manterá por toda sua existência - em suas mais profundas entranhas - os conflitos entre a velha sociedade e a nova sociedade em construção, os velhos princípios e as críticas a eles, as velhas e as novas práticas nas relações sociais.

Enfim, não compreender esse processo é idealizar a realidade, os instrumentos para a construção de outra hegemonia e a própria revolução socialista. O PCB foi e é constituído por essas contradições. No futuro não há dúvida que continuará sendo, mas permeado por outros e novos conflitos, na medida em que a realidade se transforma e se alteram as relações sociais. Não seria uma previsão futurística dizer que problemas análogos aos atuais estarão presentes na vida do PCB por toda sua existência e, para isso, basta conhecer sua história. Afinal, quantas foram suas divisões condicionadas por variações estratégicas e táticas, por erros e acertos?

Se levarmos em conta as divisões que tiveram relevância a nível nacional já seria um desafio enumerá-las, mas se formos avaliar a nível das bases do partido e de sua mediação com as lutas do povo, provavelmente impossível seria contabilizar. Aliás, todas as organizações surgidas da mesma raiz comunista, por mais puristas, “revolucionárias e ligadas às reais lutas dos trabalhadores” que se reivindicassem, caíram nas mesmas (ou ainda mais graves) contradições. Algumas vezes, como a história explicita, demonstrou-se a intencionalidade de debilitar a organização dos revolucionários. Outras vezes a ignorância, o imediatismo e o idealismo foram os elementos da divisão, inclusive em processos liderados por honestos e experientes comunistas.

Por último, talvez em poucas vezes na história, os caminhos do PCB e da conjuntura nacional foram tão obscuros e de horizonte tão difícil de vislumbrar que revolucionários decidiram seguir seus caminhos como comunistas por fora da nossa histórica organização, orientados por avaliações estratégicas e táticas tão distintas e fundamentadas cientificamente que apenas a história, vista desde o futuro, tem condições de clarificar os acertos e erros. No último caso citaria as polêmicas de Carlos Marighella em 1967 e de Luiz Carlos Prestes em 1980. Nas situações anteriores se agrupam a grande maioria das pequenas ou grandes divisões do PCB. Espero, sinceramente, que os militantes que pedem desligamento não estejam no primeiro grupo, mas só a história poderá demonstrar. Tampouco existe, pelos documentos que tornaram públicos, uma fundamentação concreta e tão radicalmente distinta das linhas do PCB que trate das razões estratégicas ou táticas que determinaram sua decisão. Seus fundamentos estão construídos em torno de elementos tão subjetivos e particulares que analisá-los se torna uma tarefa difícil, inversamente proporcional à forma que pedem desligamento do PCB, aparentemente tão fácil e rápida em se tratando de tempo histórico.

A paciência é uma das mais importantes virtudes de um comunista. Sem ela os equívocos seriam sucessivos, não por intenção de debilitar a organização dos comunistas, mas por imediatismo e idealismo, sendo que o primeiro está englobado no segundo. No entanto, infelizmente, hoje a realidade das esquerdas no Brasil está envolta nesses conceitos, dentro e fora do PCB. Os anos pós-ditadura foram perversos para a reorganização dos comunistas. Muitos foram os quadros que perdemos por tortura e assassinatos, um déficit que jamais poderemos recuperar - gerações interrompidas. Outros em tantos anos de exílio voltaram com idéias tão liberais como as dos nossos inimigos de classe. Alguns poucos seguiram combativos e revolucionários, organizando os trabalhadores na tradição dos comunistas, mas com enormes dificuldades. Poucos anos depois veio outro golpe duro, o fim da URSS, que desestabilizou ainda mais o já enfraquecido movimento comunista no Brasil e no mundo.

Os rumos dessa crise foram a criação do PT, com nebuloso horizonte estratégico e majoritariamente balizado na negação das lutas do passado e do PCB. Nesse quadro se adiciona o rápido avanço do capitalismo brasileiro e a consolidação de um consenso burguês tão sólido e forte como nunca visto. O resultado para a esquerda é lógico: fragmentação, desorientação e distanciamento do povo. Essa é uma verdade que permeia o Brasil e não o PCB exclusivamente. Obviamente uma esquerda construída com essas características, forma militantes com vícios na mesma origem: autonomistas, desorientados estrategicamente, fraccionistas, detentores da verdade e, consequentemente, distantes das lutas do povo.

No entanto, para compreender a realidade, tão mais complexa quanto mais se complexificam as relações sociais em um determinado meio de produção, mais necessário será a construção de um ser coletivo – forte, flexível e unido – em contraponto com os vícios da presente esquerda. O PCB pode equivocar-se em muitos aspectos, mas está superando-se em sua capacidade de compreender questões estratégicas fundamentais e em realizar autocríticas. Ainda faltam muitos aspectos da realidade a serem estudados e compreendidos, em outros as avaliações podem estar erradas e condicionando erros da ação. Mas o mais importante é que está em movimento e buscando acompanhar os movimentos da realidade como ser coletivo, transformando-se como instrumento nesse processo, o que é nítido e sintomático nos últimos anos.

Destaco que tempo nos processos históricos, constituídos pelas relações entre grupos sociais, tem uma dinâmica diferente do tempo biológico de um indivíduo. Neste momento é que entra a reflexão sobre uma das mais importantes qualidades de um comunista, a paciência. As transformações em processos coletivos são mais lentas que as ocorrem em um indivíduo, justamente porque são relações entre indivíduos, diversos e singulares. Ao mesmo tempo, a construção de uma consciência coletiva transforma profundamente a forma de compreender o mundo de cada indivíduo, elaborando uma verdade coletiva. Sem essa clareza podemos cair em avaliações superficiais e de respostas rápidas, mas incompletas ou falsas. Não existe nem existirá instrumento político que construamos que não esteja constituído por essas questões.

Os aspectos da vida interna do partido e, consequentemente, sua forma de interação com as classes populares estão repletos de elementos em construção. Idealizar o processo seria esperar que essa construção pudesse ser homogênea. Pelo contrário, são as disputas de idéias e concepções as que permitem o partido reconstruir-se e, quanto mais intensas e respeitosas forem, menos tropeços cometeremos ao caminhar. Repito, quanto mais criticadas construtivamente e amplamente refletidas forem as linhas definidas pelo partido, quanto mais nos aproximarmos da verdade coletiva, mais acertado será o rumo.

Mesmo que alguns, mais pela repetição de palavras soltas que por fatos, queiram calcificar o PCB, este ainda está muito longe de ser um instrumento engessado. A disputa de idéias será cada vez mais importante dentro da vida partidária quanto mais o PCB esteja vinculado às lutas reais do povo brasileiro, àquelas que se constroem de baixo para cima, e quanto mais responsabilidades com os rumos da classe trabalhadora tivermos. Repetem também que o PCB não dialoga com o povo. Eis um exemplo claro da idealização do instrumento, exigir que em 6 anos desde o XIII Congresso e a menos de 2 anos do Congresso de Reconstrução Revolucionária o PCB estivesse com um profundo diálogo com o povo.

Como fazer isso se a formação de quadros novos é um processo tão lento e difícil? Como acertar o rumo da prática cotidiana sem um profundo debate sobre as questões estratégicas da realidade brasileira? Além do mais, construir uma organização que seja parte e instrumento potencializador das diversas lutas do povo não acontece somente pela vontade ou pela boa prática dos revolucionários. Depende das condições históricas geradas pelo próprio antagonismo das classes em luta. Por mais acertado que possa ser o diagnóstico que fazem os que dizem que o PCB está longe do povo, que será avaliado pelos que permanecem, estão longe de acertar as soluções para os problemas ao simplificar e idealizar a realidade e as relações sociais nela desenvolvidas.

Tenho também profunda divergência quando alguns afirmam que o PCB está permeado de dogmatismos e mistificações. Não porque pense que é uma organização sem problemas, mas porque não acredito que essa falsa dicotomia seja um elemento que os marxistas devam utilizar para o debate político. Afinal, quem é o dogmático e quem é o dialético? Podem existir divergências políticas (em conteúdo, forma e profundidade) ou interpretações distintas da realidade (mais ou menos científicas) e que devem ser enfrentadas em busca de uma verdade coletiva. Dizer que o PCB está permeado de camaradas repletos de dogmas, como afirmaram, esconde as divergências reais e congela as contradições da organização e dos indivíduos que a compõem.

Uma questão de método importante é como aprender a conviver com a diversidade e construir, politicamente, a unidade, e pedagogicamente avançar na consciência coletiva e transformar-se nesse processo. Não é esse o desafio dos revolucionários e do partido, contribuir para elevar o nível de consciência da classe trabalhadora que está envolta em senso comum? Provavelmente, pela heterogeneidade da organização a nível nacional, existem debates mais profundos e democráticos que outros, que devem ser utilizados como exemplo, sobre variados temas. Um comunista deve ter cuidado para não transformar a parte em totalidade, por mais complexa que seja sua inserção direta, seja no movimento, seja no partido.

Por fim, me surge uma reflexão a partir de uma infeliz afirmação de um camarada, quando, na ânsia de dizer que o PCB não é dono da verdade revolucionária e justificar sua decisão de abandonar a construção da organização, diz que tem amor pela causa e não pelo instrumento. Discordo essencialmente, já que na busca de respostas rápidas e fáceis se invertem conceitos e princípios. Pela causa revolucionária não existe comunista que tenha amor, um sentimento tão subjetivo para um projeto de sociedade, mas sim convicção fundamentada na ciência e nas experiências de luta dos povos; pelo instrumento os revolucionários devem cultivar um profundo sentimento de identidade – e tudo que construímos com consciência, trabalho e sacrifício amamos; entretanto o mais profundo sentimento de amor não é com a causa e não pode ser com o instrumento, que de fato é fundamentalmente um meio, o profundo amor de um comunista é com o povo sofrido e trabalhador, com os humildes de sua pátria e do mundo.

O PCB é um instrumento - não o único - que poderá contribuir muito para a reorganização dos revolucionários no Brasil, para a unidade da classe e para a construção de uma contra (outra)-hegemonia tão ampla e intensa que possa fazer frente ao Estado burguês e todos seus instrumentos de dominação, abrindo o caminho para a construção de um Brasil socialista. Essa será nossa batalha cotidiana, dentro da organização e na ação junto aos trabalhadores. Por esse instrumento, companheiros e companheiras que agora seguem outro caminho, e por acreditar tanto nele como esperança para o povo brasileiro, poderia dar minha vida se necessário, assim como tantos outros camaradas ontem, hoje e amanhã.

Otávio Dutra, militante do núcleo Paulo Petry do PCB e da UJC e estudante de medicina em Cuba.

12 de maio de 2011, Havana - Cuba

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